“Pouco tempo atrás contei aos meus pais que eu era gay. Não pegou muito bem e eles me disseram que há algo psicologicamente errado comigo, que me criaram errado. Hoje minha mãe, meu pai e eu tivemos uma longa ‘conversa’ no meu quarto, na qual eles me informaram que eu devo me inscrever em um programa cristão fundamentalista para gays… É como um treinamento militar… Se eu sair ‘hétero’, ficarei tão instável mentalmente e deprimido que não terá importância”.
O depoimento é do adolescente Zach, 16, do Tennessee (EUA), num blog na internet, antes de ser enviado para a associação Love in Action, de onde sairia “liberto”. Lá, Zach jogaria futebol, não manteria contato físico (nem aperto de mãos) e teria todas as conversas monitoradas – inclusive com a família. Houve comoção, e o Estado interveio. Havia a suspeita de que a associação oferecia “serviços terapêuticos” sem licença. Quando recebeu alta, Zach
ainda se dizia gay.
No Brasil, Daniel Silva, 32, também nascido num lar evangélico, conheceu o ministério “Deus se Importa”, da Igreja Batista da Lagoinha (Belo Horizonte, MG). Alimentando a “idéia de que era possível ser liberto da homossexualidade”, internou-se na “casa de recuperação”.
“Minhas malas foram todas fiscalizadas”, diz Silva. “A única hora que tínhamos com Deus era de manhã, das 7h às 8h, antes do café e à noite. Somente algumas pessoas eram autorizadas a sair. Eu não podia sair sem autorização. Íamos à igreja somente no domingo à noite acompanhados por alguém da casa”. Daniel Silva permanece gay.
Sergio Viula, 41, professor de inglês, formando pelo Seminário Teológico Betel e em filosofia pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ajudou a formar o Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses) – ONG evangélica que auxilia na “cura do homossexualismo”. Chegou a ser pastor da Igreja Batista, casou-se, teve dois filhos. Era um exemplo de cura e libertação. Dava testemunho da própria “cura”. Hoje, diz-se homossexual – como, na verdade, sempre o fora.
São três exemplos, mas não únicos (você, leitor, provavelmente acreditou ou ainda acredita na libertação da homossexualidade). E a tinta fica mais forte quando lê-se o estudo da Universidade da Califórnia que mostrou que a postura dos pais causa ações autodestrutivas (depressão e tentativa de suicídio) nos adolescentes homossexuais. Os rechaçados por suas famílias tem oito vezes mais probabilidade de tentar suicídio e três vezes mais chances de se drogar quando adultos em relação aos que recebem apoio familiar. Normalmente, pais evangélicos reagem muito mal à homossexualidade dos filhos – em grande parte, responsabilidade do discurso religioso homofóbico.
Em outro estudo, este do Departamento de Saúde dos EUA – mostra que 40% dos casos de suicídio ocorridos entre jovens LGBT têm ligação com a homofobia religiosa.
Mestre em saúde coletiva pelo IMS/UERJ (Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutor IFSC/UFRJ (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Marcelo Natividade, no estudo “Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evangélicas” traça três afirmações recorrentes nas igrejas, sobre homossexualidade: 1) é comportamento aprendido; 2) é um problema espiritual; 3) é antinatural.
Viula, um dos fundadores desses movimentos de cura, confirma o estudo de Natividade. Em entrevista à revista Época de novembro de 2004, diz que essas “casas de recuperação” “vendem uma solução, enchendo a pessoa de culpa”. As razões para a homossexualidade “sempre [estão] ligadas à desestruturação familiar ou a traumas”. Diz que o discurso é “cruel”: “Jesus te ama, nós também, mas você precisa deixar de ser gay”. Para o ex-pastor, o homossexual continua gay, mas com um “pé no prazer e o outro na dor”, com sentimento de culpa, medo e autorrejeição. “Criávamos uma paranóia na cabeça deles”, assume.
Algumas igrejas não internam gays, no entanto, prometem a “cura interior” – caso da Igreja Renascer em Cristo. Relatos ouvidos pela reportagem dão o caminho das pedras para “a cura”. Primeiro: a pessoa conta toda a sua história a um pastor – acompanhados de testemunha; depois: ouve conselhos, é acompanhada por um líder e recebe “receitas” de jejum e oração. É das mais leves. No entanto, na semana anterior à publicação desta reportagem, um ex-bispo cometeu suicídio. Ele era gay.
Nestas clínicas de reversão sexual e nos discursos de religiosos radicais, diz Natividade, os homossexuais “são vistos como promíscuos, pedófilos e sujeitos que espalham doenças, portanto, indivíduos perigosos à coletividade”. E alerta para o suposto embasamento científico, que, na verdade, tratam-se de “saberes biomédicos do início do século passado”. Dito isto num ambiente de isolamento familiar, a agressão psicológica é ainda mais cruel.
“Que tipo de recuperação um homossexual pode ter num lugar como esse e com esse regime?”, pergunta Daniel Silva – o do “Deus se Importa”, da Igreja Batista da Lagoinha – que confirma a chantagem emocional a que são submetidos os internos. Segundo Silva, no internato não pode haver questionamento sob o risco de o interno ser “taxado como rebelde”. Outra frase comum: “Não dificulte seu processo de libertação”.
“As cartas que a minha mãe me escrevia eram abertas e lidas antes de mim”, revela. E conta que a direção não as entregava caso o conteúdo fosse reprovado. A alegação era de que queriam poupá-los de assuntos que os pudessem deixar “sensíveis”. Ligações da família só eram recebidas com o pastor presente. Nenhuma carta pôde ser respondida, segundo Silva. A mãe – há de se deduzir – estava em “desespero”.
Mesmo que oficialmente a permanência não seja obrigatória, há casos que beiram a ocorrência policial. Foi o que ocorreu com Daniel Silva, inclusive. A pedido da mãe, uma missionária ameaçou chamar a polícia, caso o rapaz não fosse libertado. “Ela ameaçou ir com a polícia à casa [de ‘recuperação’] caso eles não me colocassem na linha [telefônica]”, relata. “[Na saída], ninguém da direção se despediu de mim”. “Sou o melhor exemplo de que não existe ‘cura’ para homossexualidade”, conclui Sérgio Viula (co-fundador do Moses). A afirmação é corroborada pelo Conselho Federal de Psicologia. Na resolução 001/1999, o conselho trata a homossexualidade como “identidade”, não como “doença, nem distúrbio, nem perversão” e proíbe que psicólogos colaborem em “eventos ou serviços que proponham tratamento e cura” de LGBT.
Portanto, é ilegal qualquer “casa de recuperação” ou “tratamento de cura e libertação” promovidos por igrejas evangélicas com pseudoprofissionais. “A literatura científica não registra nenhum caso [de reversão]”, afirma João Batista Pedrosa, psicólogo e autor do livro “Segundo Desejo”, à revista “A Capa”. E diz mais: “estudos e pesquisas, entidades representativas e científicas de psicólogos nos EUA, na França, Espanha e no Brasil concluíram (…) [que] para que o indivíduo possa ser emocionalmente saudável e ter uma boa qualidade de vida é necessário que ele vivencie a sua verdadeira orientação sexual”.
As consequências da intolerância religiosa são dor e sofrimento. “Uso a psicoterapia há mais de 10 anos, hoje, estou com 18. Aos oito anos, um psicanalista ‘descobriu’ a minha homossexualidade, tentou revertê-la com psicoterapia e me impôs a obrigação de gostar de meninas”, diz Silva em depoimento a Pedrosa. Há três anos, ele entrou em um estado depressivo grave, com uso, inclusive, de remédios, já que ser gay “é um pecado muito grande no meio cristão”. “Somos encarados como leprosos e somos afastados de tudo e de todos”, lamenta o jovem.
Silva passou a sofrer de fobia social, depois com paranóia e “colapsos de pavor e somatizações, como: vômitos, falta de ar e taquicardia”. Tempo depois, trocado o psiquiatra por um neurologista, “a depressão atenuou a ponto de conseguir frequentar um psicólogo” – para o azar do rapaz – adepto a corrente dos que acreditam na “reversão sexual”. Silva era obrigado a assistir a filmes eróticos héteros para que “passasse a ter prazer com aquilo”. “Foi catastrófico”, diz. “Toda a minha depressão voltou”.
O jovem de 18 anos diz ser dependente de remédios e já ter tentado suicídio três vezes.
Além do dolo, beira a hipocrisia a promessa de “reversão” sexual. E revolta. “Uma vez criaram uma célula de homossexuais que se reunia na Tijuca [Zona Norte do Rio] para fazer uma espécie de terapia em grupo. Em vez de virarem heterossexuais, começou a rolar paquera”, diz Viula, ex-Moses. E continua: “Tinha gente que saía da reunião para namorar. Dentro do próprio apartamento que sediava os encontros aconteceram experiências sexuais”.
“Outra situação absurda ocorreu em um congresso da Exodus – grupo cristão internacional que combate a homossexualidade. Os caras paqueravam e ficavam juntos durante o evento”, revela Viula. “A mensagem da militância gay, que se reuniu na porta, era: ‘Nos deixem em paz’. Lá dentro dizíamos que Deus transforma. Mas quem estava no evento fazia o mesmo que o pessoal de fora”. E conclui: “Era uma incoerência total”.
“Do ponto de vista científico, é uma fraude [a promessa de reversão da orientação sexual], pois a psicologia não reconhece que seja possível”, afirma peremptoriamente Pedrosa, para lembrar da proibição, pelo conselho, que psicólogos utilizem tais práticas com pacientes. “O resultado é danoso. Os efeitos são severos distúrbios comportamentais e psiquiátricos”, alerta.
Uma das precursoras no movimento teológico inclusivo no Brasil, a Igreja Cristã Contemporânea milita para desconstruir o discurso religioso homofóbico. “Queremos levar a todos, inclusive ao público LGBT, que Deus não tem preconceito. Que tem um amor incondicional. Que nos ama tal como fomos feitos”, diz o pastor Marcos Gladstone, fundador e presidente da igreja. “É possível ter uma vida de amor e fidelidade com Deus e o companheiro – mesmo que do mesmo sexo”.
Mas a “luta” está só no começo. No último fim de semana, Gladstone e seu companheiro, pastor Fábio Inácio, foram vítimas de um vídeo criminoso, no Youtube, em que apareciam fotos do seu casamento, trilha de um forró tosco evangélico com o nome “Adão e Ivo”, de Antonio Jose Ferreira de Lima, o Toinho de Aripibu(!).
Os pastores apresentaram denúncia contra o cantor Emanuel Ferreira de Albertin e o compositor – o Aripibu(!) – no MP-RJ (Ministério Público), OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Superintendência de Direitos Individuais Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do RJ e na Comissão de Combate à Intolerância Religioso por práticas de preconceito, discriminação e homofobia religiosa.
“Louvor é para adorar, exaltar, engrandecer, agradecer a Deus. Não para atacar o próximo”, lembra Gladstone. “E a democracia tem como prerrogativa a liberdade de expressão, como adoram dizer quem condena a homossexualidade. Mas é também do jogo democrático que respondamos por nossos atos, acusações e danos”.
A reportagem procurou, via e-mail, a Igreja Batista da Lagoinha – responsável pelo ministério “Deus se Importa” -, a direção do Moses e a Igreja Renascer em Cristo, citados nessa matéria. Até o fechamento da matéria, ninguém respondeu.